Este meu Blog centra-se principalmente na cozinha tradicional portuguesa. Com maior destaque para a fascinante cozinha regional Alentejana, citando nomeadamente as suas tradições, origens, costumes e história. Pretendo também inovar e alterar/enriquecer à minha maneira algumas das receitas tradicionais, oferecendo-lhes um ar mais moderno e inovador mas sempre mantendo os ingredientes tradicionais da região.

As Origens. Influências Muçulmanas na Cozinha Alentejana



 Os Alimentos e a Cozinha


     Se dermos uma vista de olhos sobre a gastronomia do Alentejo, imediatamente identificamos produtos e práticas de cozinha com a cultura muçulmana. As semelhanças permitem concluir que a cozinha árabe foi a verdadeira matriz da cozinha alentejana. Quase todo o receituário tradicional do Alentejo tem fortes e diretas influências da cozinha árabe, subtraindo todas as que estão diretamente ligadas ao consumo do porco.

    Existem influências directas e importantes dos comportamentos alimentares dos povos que viveram no Alentejo, na actual alimentação alentejana, determinadas receitas ainda em plena execução, encontram-se fixadas há vários séculos na sua forma e na sua interpretação, por exemplo, o Ensopado de Borrego é cozinhado nos nossos dias da mesma forma como era cozinhado um ensopado árabe segundo receitas do século VIII.

     A escassez dos recursos e a simplicidade dos paladares estiveram na génese da «tharîd», pão mergulhado num caldo aromatizado e temperado com azeite. Com ela poderia comer-se qualquer coisa; carne, peixe ou vegetais acompanhavam normalmente a «tharîd», um prato simples, muito elogiado por Maomé e que constituía uma refeição completa, um luxo para alguns. Também conhecida com tarida (Târida vem da raiz Târada, que significa «migar pão»), esta receita deve ser considerada como o arquétipo da famosa Açorda Alentejana, opinião que é partilhada por alguns historiadores da alimentação durante o período islâmico.

     Do período romano há noticias de uma sopa feita de ervas aromáticas, alho, pão, azeite e água. A açorda atravessou culturas e os árabes fixaram-na definitivamente, levaram-na a um estatuto de «prato real», estatuto que vigorou até ao século XIV, na corte dos Merimides, em Fez.


Açorda Alentejana
     A açorda Alentejana, pode ser feita com poejos ou coentros, prato assistencial a todas as classes, já tem sido motivo de ironias ignorantes, tem a receita fixada há milénios.













     Os vestígios da cozinha árabe são bastante fortes na gastronomia alentejana. Diz-se que o Alentejo é o herdeiro da cultura alimentar muçulmana e a cozinha árabe foi a verdadeira matriz da cozinha alentejana. à excessão do tomate, do pimento, da batata (vindos do Mundo Novo), do peru, de algumas variedades de feijão e pouco mais, quase todos os produtos que hoje consumimos eram da cozinha árabe com confecções que se mantiveram mais ou menos presentes. Vejamos então alguns exemplos, a «Açorda» (com água, ovos, pão e coentros), as «Migas», sucessoras da «harisa», os «Ensopados» que não são mais que a «tarîd» ou «tarida», «Sopa de Beldroegas», «Sopa de Feijão-Frade», «Sopa de Feijão com Couve», «Sopa de Grão com Espinafres», «Sopa de Cardos», «Ervilhas» ou «Favas Guisadas», «Escabeche de Peixe», «Borrachos com Ervilhas», «Perdiz com Couve», «Lebre com Grão», «Couve Recheada», «Cabrito à Serrenha», «Cabeças de Borrego Assadas», e, na doçaria, «Alfitetes», «Nógado», «Torrão de Ovos», «Fartens» e «Manjar Branco» - tudo receitas de origem árabe.

     Principalmente duas receitas referência da cozinha alentejana são execuções fixadas pelos árabes há mais de um milénio: a açorda e as migas. Da primeira já foi feita referência; as migas eram feitas numa sertã de cobre, temperadas com alho e azeite e, contrariamente ao ditado que dizia «migas de pão, duas voltas e já estão» as migas dos árabes eram voltadas várias vezes, como se faz no Alentejo, até tomarem cor e começarem a tostar.


Migas à Alentejana


     O ensopado de borrego, tal como se faz ainda em Serpa (consulte neste blog a página de receitas tradicionais alentejanas), tem a mesma confeção desde os tempos árabes.



Ensopado de Borrego
      A cabeça de borrego assada no forno é feita da mesma forma como a fazem em Ourique ou em Pias, idênticas às mencionadas nos livros de cozinha árabes. A receita do borrego assada no forno, retirando a açafrão que já pouco se usa no Alentejo para a confeção deste receita, é completamente igual (ver página das receitas). O escabeche tem os mesmos ingredientes e é feito com os mesmos peixes. Iguais são as sopas de grão com labaças ou espinafres, o guisado de borrego, se retirarmos a canela, o manjar branco, o massapão, as filhoses, os alfitetes, etc. (ver receitas). 



Cabeça de Borrega assada

Nógados

     O manuscrito «Livro de receitas de cozinha da Infanta D. Maria de Portugal», de princípios do século XVI, menciona pratos mouriscos. Na «Arte de Cozinha» (1680), de Domingos Rodrigues, 74% das receitas têm forte influência da cozinha árabe. Isto é, mais de 400 anos depois do fim do domínio islâmico, com refere o grande historiador Alfredo Saramago, «o primeiro livro de cozinha português (publicado) reflete as influências da alimentação dessa fulgurante civilização».



Carapaus de Escabeche
Favas Guisadas

     O poejo, o coentro, o cordeiro de carne gorda, as sobremesas bem açucaradas à base de amêndoas e nozes, são da culinária árabe. Também uma grande quantidade de especiarias que agregavam aroma e sabor à comida, através de uma refinada e imaginosa combinação dos ingredientes; alfazema, a água de rosas, a canela, a noz-moscada, frutos secos (tâmaras, passas, pinhões, pistachos) e frescas (romã, maçã, figo), sem falar do açúcar e do mel.

     Ao contrário do que acontecia na cozinha romana, as carnes tinham grande peso na culinária levantina (cozinha realizada à base de arrozes, mariscos, carnes e verduras). O carneiro e o borrego eram as carnes mais apreciadas. A galinha, o frango, o ganso, o pato, pombos e as caças em geral eram também consumidas. Muito raramente consumiam carne de boi ou vaca, reservados para o fornecimento de leite ou para o trabalho nos campos. Usavam marinadas para temperar as carnes, geralmente assadas no forno e raramente grelhadas. A marinada era feita com vinagre, especiarias, sal, leite e morrî (tempero feiro com vísceras de peixe, vinagre e pimenta). Usavam o almofariz (nome de origem árabe) para esmagar a carne quando faziam almôndegas (al-bawdaqa, em árabe).

     A carne de porco, interdita pelo Alcorão, não era consumida. Havia no entanto, tolerância de seu consumo por parte de cristãos e mocárabes (cristãos que habitavam as terras ocupadas por árabes), desde que seu consumo não fosse ostensivo.

     Peixes também eram consumidos, mas em escala bem menor do que durante o tempo romano, em Mértola, onde existia um porto fluvial, o seu consumo era maior. às regiões do interior, o peixe chegava salgado, trazido pelos almocreves (pessoas que conduziam animais de carga e/ou mercadorias de uma terra para a outra em Portugal, durante a idade média e até tempos bem recentes, meados do século XX), na volta de suas viagens para o litoral para onde levavam os cereais. Peixes gordos como o atum e a sardinha eram os preferidos. Dos peixes do rio, a truta era a mais abundante.


Almocreves em viagem,
 dois viajantes com burros carregados cuidam de um deles.



         Consumia-se muito pão, elaborado à base de trigo, e outros cereais como o arroz, outra influência forte na região. O arroz era normalmente feito com carnes e vegetais, preparado na panela ou no forno. Comiam também o arroz doce, que chegou até nós, mesclado com açucar e especiarias como a canela e o cardamono. O pão era feito em casa e assado no forno doméstico, o «tanûr», ou cozido no forno do padeiro, o «furn». Uma papa feita com farinha e leite, à qual se podia juntar nozes e amêndoas, dependendo das posses de cada um, era a primeira refeição da maioria da população.

     Os legumes e as leguminosas eram frequentes na mesa árabe-alentejana. Alcachofras, espargos, espinafres eram bastantes vezes cozinhados com as carnes. Grãos-de-bico, favas, lentilhas e feijões, assim como beringelas, alface, nabos e rabanetes estavam sempre presentes na dieta. Em relação aos espinafres e beringelas, estes vieram da Pérsia, assim como o sorgo, arroz, cana-de-açucar, etc. É pertinente referir que as tradições alimentares da Pérsia influenciaram marcadamente a cozinha árabe.

     A doçaria árabe era altamente sofisticada. Sumos de frutas eram elaborados, macerando frutos no açucar; geleias, frutas em compotas, xaropes, puré de maçã e pastas de nozes eram muito apreciados. Nos bolos, utilizavam a farinha, o ovo, o açucar (por vezes mel), a canela, aos quais adicionavam muitas vezes pistachos, nozes, amêndoas e avelãs.

     A especialidade da cozinha árabe funda-se na utilização criteriosa e imaginativa dos ingredientes e das combinações, nos vários processos de coccção, nos sabores e nas consistências.

     As gorduras utilizadas eram a de carneiro, com uma técnica própria para a clarificar, conservar, perfumar e colorir. Era utilizada principalmente para frituras. O azeite era a gordura mais consumida embora a manteiga também tivesse largo uso. Era fundida e clarificada e além de assistir na cozinha era apreciada barrada no pão. Os muçulmanos comiam muitos queijos, frescos e secos, e utilizavam com frequência ovos, para além dos doces, para darem mais consistência aos molhos e para enfeitar pratos antes de serem servidos. Eram também comidos de várias maneiras. Era vulgar o uso de vinagre, sumo de limão e de laranja para compor os sabores acres ou azedos. Com eles faziam conservas de azeitonas, de alcaparras e outros legumes, numa preparação que hoje, genericamente, mas com algum erro, chamamos «pickles», em vez de os considerarmos acepipes. Estes molhos agrumes eram também utilizados para marinadas, de carnes e peixes, entravam na composição de alguns molhos e era com ele que se fazia escabeche. Já nesta altura as azeitonas, muito comuns e de baixo preço, eram comidas como «conduto» do pão, e temperada com orégãos e sal para adoçarem e se conservarem durante todo o ano. Era costume guardá-las em talhas de barro. As azeitonas também eram comidas pisadas e retalhadas logo a seguir à apanhada, depois de ligeiramente adoçadas.


Talhas de barro
    
     As bebidas dos muçulmanos eram a água, com a qual tinham cuidados especiais, os sumos de frutas, o hidromel (hidromel ou água-mel como se chama no Alentejo, era um refrescante e um revigorante que tanto se bebia no Inverno como no Verão), e algumas bebidas semi-fermentadas, feitas à base de mosto e de frutas. O vinho, embora interdito, era consumido com frequência.
     Quanto aos sumos bebiam-nos simples com açucar ou mel, ou ainda com as fermentações ou preparações que os transformavam em bebidas com identidade própria.
     Os xaropes estavam vulgarizados e faziam-nos de rosas, de mel, de romãs, de violetas, de pêssego, de hortelã-pimenta, etc. Faziam uma bebida com mosto e frutas, «rubb» (em português, arrobe, comum no Alentejo), ao qual juntavam água. Bebiam também o «jamguri», mosto ao qual adicionavam especiarias e mostarda.

     Contudo, algumas receitas só diferem na quantidade e na qualidade de especiarias que a cozinha árabe utiliza e que não são comuns nas receitas alentejanas. O que não indica que não se tivessem usado nesta terra que hoje é o Alentejo, em tempos de ocupação muçulmana, época em que essas especiarias eram comuns. Depois da Reconquista ficámos privados delas até à Expansão. Os Descobrimentos voltaram a trazê-las, entrando de novo na cozinha alentejana mas de forma diferente, usando-se mesmo com excessos até uma época tardia. 


Da Reconquista Cristã à Expansão  

     Com a saida do Islão e sem o ilícito do porco, a criação deste animal aumentou tão consideravelmente que pode ser considerado como um traço distintivo na economia alentejana a partir do século XIII. As tradições culturais célticas e visigóticas avivaram-se e o porco começou a ser considerado o alimento de primeiro plano, superando a criação e ovinos, dominante até essa época.

Porco Alentejano


Cozinha Judaica e Cozinha Alentejana

   
       Existem ideias não concretas que defendem ter havido influências dos hábitos alimentares judaicos na cozinha alentejana, apesar do seu principal interdito, o porco, ser, juntamente com o pão, o alimento primordial da cozinha do Alentejo.
    
     Não se vislumbra qualquer relação entre uma e outra cozinha, embora se encontrem numerosos produtos que são comuns às duas formas de confecionar alimentos.
    
     O porco e o sangue separam completamente as duas culturas, com conceitos opostos. O porco, o animal de maior preferência na alimentação alentejana constitui o principal interdito da cozinha judaica. O sangue, que é sinal de vida, é por essa mesma razão completamente interdito pelos judeus, enquanto que a liturgia do sangue na cozinha alentejana é pujante e está presente em várias celebrações.
     Na matança do porco, com a cachola ou a moleja, ocasião de acentuada convivialidade que reúne os amigos e toda a família para comer a cachola ou a moleja em que o sangue do animal é componente de eleição. No sarrabulho e sarapatel, sopa feita do sangue retirado do borrego pascal, encontra-se novamente a exaltação desse produto. Nas esplendorosas cabidelas de galinha, em que o molho tem o sangue como ingrediente essencial.

    Duas culturas, dois conceitos sobre a vida. Uma, reconhecendo que o sangue é vida, abstêm-se do seu consumo, outra, considerando-o da mesma forma, consome-o com prazer e alguma ritualização, entendendo que, secundo o principio antropológico da similitude, comendo sangue está a «comer» a vida.

Exemplo de Mesa Judaica


Exemplo de Mesa Alentejana